Parashat Lech Lecha
- Reginaldo Eugenio Ramos Teodoro
- há 1 dia
- 3 min de leitura

Em Bereshit (Gênesis) 12:1 ressoa o primeiro chamado da emunah:
וַיֹּאמֶר יְהוָה אֶל־אַבְרָם לֶךְ־לְךָ מֵאַרְצְךָ וּמִמּוֹלַדְתְּךָ וּמִבֵּית אָבִיךָ אֶל־הָאָרֶץ אֲשֶׁר אַרְאֶךָּ׃
“E disse o Eterno a Avram: Vai-te de tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que Eu te mostrarei.”
A expressão לֶךְ־לְךָ (Lech Lecha) não se limita a uma ordem geográfica. Ela contém um eco interior: “Vai para ti mesmo.”
O chamado divino não é apenas o deslocamento de um corpo, mas o nascimento de uma consciência. É a ruptura com o previsível, o gesto inaugural da liberdade espiritual. Avram é convidado a deixar não apenas o solo de Ur, mas o solo simbólico que o sustentava — sua cultura, sua genealogia, suas certezas herdadas.
Segundo Rashi, este movimento é “para o teu bem e para a tua elevação”.
A travessia é o ato criador por excelência. Assim como o Eterno cria o mundo a partir do nada, Avram é convocado a criar a si mesmo a partir da incerteza. A emunah não é a fuga da dúvida, mas a arte de caminhar sobre ela.
Em Martin Buber, esta passagem é o instante do primeiro encontro entre o “Eu” e o “Tu”. Deus fala — e no som dessa voz nasce o humano que escuta. O “Lech Lecha” é o chamado do Tu absoluto, que desperta o Eu autêntico. É a palavra que funda o diálogo, a linguagem viva em que o divino e o humano se reconhecem mutuamente.
Do ponto de vista psicológico, “Lech Lecha” é o momento do despertar da individuação.
Na leitura junguiana, sair da “terra e da casa do pai” é abandonar o inconsciente coletivo para descobrir o próprio centro.
Na psicanálise existencial, é o convite para assumir o próprio desejo, em vez de viver sob o desejo do Outro.
Abrão torna-se Abraão no instante em que o chamado divino deixa de ser um eco externo e passa a pulsar dentro dele como vontade e ação.
Mas o “Lech Lecha” não pertence apenas ao deserto de outrora. Ele continua a ecoar em cada geração.
Em nossos dias, este mandamento pode significar desconectar-se do previsível, romper o automatismo das narrativas — religiosas, políticas, tecnológicas — e buscar o caminho da autenticidade.
O rabino Jacques Cukierkorn encarnou esse chamado em sua própria jornada: ao unir tradição e modernidade, presença e inclusão, espiritualidade e acessibilidade, traçou um “Lech Lecha” contemporâneo — um caminho que une o real e o virtual, o humano e o transcendente.
No campo da saúde e da educação, “Lech Lecha” é também o movimento da escuta: sair da medicina protocolar para reencontrar o rosto singular do paciente; sair da pedagogia padronizada para reencontrar o sujeito que aprende. É a travessia do sistema para o humano, do geral para o particular — o mesmo impulso que move a alma de Avram rumo à terra que ainda não conhece.
E o destino? Ele não é revelado.
A voz divina não diz qual terra, apenas promete: “Eu te mostrarei.”
É a pedagogia da emunah — caminhar sem mapa para descobrir o verdadeiro mapa.
A mística judaica reconhece nesse gesto o exercício de emunah e hitbodedut (escuta interior): somente quem caminha em silêncio é capaz de ouvir o que o mundo ainda não disse.
Assim, Lech Lecha é o gênesis da responsabilidade pessoal.
É a passagem da imitação à criação, da herança à co-criação, do pertencimento inconsciente à escolha consciente.
O “vai para ti mesmo” é o eco eterno que convoca cada alma a alinhar-se com sua essência.
Diz o Midrash (Bereshit Rabbah 39:9):
“Quando Deus disse ‘Lech Lecha’, o mundo inteiro silenciou, e Abraão escutou o som do futuro.”
Talvez seja esse o som que ainda precisamos ouvir — o som do porvir, o som da alma que desperta.
Cada geração é chamada a refazer esse caminho: sair da casa do pai, do conforto das fórmulas, e ouvir o chamado que nos recria.
A Brit Brachá Brasil é, em seu âmago, a continuidade viva desse chamado.
Como Abraão, é uma travessia que não se encerra, uma herança que se faz ato.
Lech Lecha é seu espírito: caminhar, renovar, revelar.
De geração em geração — לְדוֹר וָדוֹר — a voz ainda sussurra:
Sai… e Eu te mostrarei.
_edited.png)



.png)
Comentários