Os Seis Sexos no Talmud
- Charton Baggio Scheneider
- 8 de abr.
- 6 min de leitura

Uma Visão Jurídica e Rabínica da Complexidade Sexual e sua Relevância Contemporânea
A literatura rabínica clássica, especialmente a Mishná e o Talmud (séculos I a VIII EC), apresenta uma compreensão de gênero e sexo mais complexa do que o modelo binário predominante em muitas tradições religiosas. Em vez de apenas duas categorias — masculino e feminino — os rabinos identificaram seis categorias sexuais com base em características anatômicas e reprodutivas observáveis. Essa abordagem visava principalmente esclarecer obrigações legais, pureza ritual, herança, casamento e participação religiosa.
Atualmente, temas como intersexualidade, identidade de gênero e não binariedade têm gerado debates intensos tanto em ambientes acadêmicos quanto sociais. Diante disso, as categorias rabínicas antigas têm despertado novo interesse por parte de estudiosos e ativistas, por representarem um paradigma histórico no qual corpos fora da norma binária foram, ao menos juridicamente, reconhecidos e discutidos.
As Seis Categorias Sexuais no Talmud
Zachar – Macho
Nekevah – Fêmea
Andróginos – Pessoa com genitália masculina e feminina
Tumtum – Pessoa com genitália ambígua ou encoberta
Ailonit – Mulher que não desenvolve sinais sexuais típicos e é estéril
Saris – Homem estéril (por natureza ou castração)
Essas categorias não são "gêneros" no sentido contemporâneo da identidade subjetiva, mas refletem um reconhecimento legal da diversidade corporal e um esforço para incluir tais casos na estrutura normativa da halachá (lei judaica).
A seguir, descrevemos essas seis categorias com breves explicações e exemplos talmúdicos.
Exemplos Talmúdicos Relevantes
1. Zachar (זָכָר) – Macho
Um homem cujas características sexuais e reprodutivas são claramente masculinas. Ele é sujeito às obrigações religiosas específicas aos homens, como colocar tefilin e estudar Torá.
Exemplo: A maioria das obrigações de tempo fixo, como a recitação do Shema, é obrigatória apenas para os homens (Berachot 20b).
2. Nekevah (נְקֵבָה) – Fêmea
Uma mulher com características sexuais femininas típicas, geralmente identificada pelo desenvolvimento anatômico e pela capacidade reprodutiva. Suas obrigações haláchicas são diferentes das dos homens.
Exemplo: Mulheres estão isentas de certos mandamentos ligados ao tempo (Mishná Kiddushin 1:7).
3. Andróginos (אַנְדְּרוֹגִינוֹס) – Intersexo com Características de Ambos os Sexos
Pessoa que possui órgãos genitais masculinos e femininos. O Talmud debate se essa pessoa deve ser tratada como homem, mulher ou como uma categoria única.
Referência: Mishná Bikkurim 4:1 afirma:“O andróginos é como um homem em alguns aspectos e como uma mulher em outros; em alguns aspectos é como ambos, e em outros, como nenhum dos dois.”
Exemplo adicional: Em Yevamot 83a, há uma discussão se um andróginos pode realizar o sacrifício no Templo, que era reservado a homens — um sinal de que era visto, pelo menos em alguns contextos, como homem.
4. Tumtum (טֻומְטוּם) – Gênero Indeterminado
Pessoa cujos genitais são ambíguos ou ocultos, de modo que não se sabe se é zachar ou nekevah. Pode-se revelar mais tarde, espontaneamente ou via intervenção, qual é o sexo biológico.
Exemplo: Em Mishná Bikkurim 4:2, afirma-se que o tumtum “pode ser às vezes como um homem, às vezes como uma mulher, ou nem como um nem como outro”, e por isso, há incerteza legal sobre sua participação em rituais.
Exemplo talmúdico: Em Yevamot 8a, discute-se se um tumtum pode contrair casamento, já que seu status legal é incerto. A dificuldade não está em condenar ou excluir, mas em determinar como aplicar a lei quando o sexo é indeterminado.
5. Ailonit (אַיְלוֹנִית) – Mulher Estéril e com Traços Masculinos
Uma mulher que, mesmo ao atingir 20 anos (alguns dizem 18), não desenvolveu sinais típicos da puberdade feminina. É considerada infértil e, às vezes, com aparência ou voz masculinas.
Etimologia: Ailonit deriva de ayil (איל) – “carneiro”, indicando traços considerados masculinos.
Exemplo talmúdico: Em Yevamot 80b, uma ailonit não pode contrair casamento levirato (yibum), pois presume-se que não pode ter filhos — e a função do levirato é perpetuar a linhagem do falecido.
6. Saris (סָרִיס) – Homem Estéril ou Castrado
Homem que não desenvolveu puberdade masculina até os 20 anos (saris chama) ou que foi castrado (saris adam). Ambos são isentos de certas obrigações relacionadas à procriação.
Exemplo talmúdico: Em Mishná Yevamot 8:4, é dito que um saris não pode realizar o casamento levirato. O Talmud em Yevamot 80a detalha a diferença entre o saris natural (chama) e o saris causado (adam).
Conexões com Conceitos Contemporâneos
Intersexualidade e o Reconhecimento Haláchico
Os termos andróginos e tumtum se relacionam diretamente ao que hoje chamamos de condições intersexuais — variações congênitas na anatomia sexual que não se encaixam nas definições típicas de masculino ou feminino. Estima-se que cerca de 1,7% da população mundial nasce com características intersexo, o que coloca esses casos fora da exceção médica e mais próximos do comum do que se pensa.
Os rabinos talmúdicos não usaram a linguagem moderna de biologia ou genética, mas reconheciam, com riqueza de detalhes, os desafios sociais e legais dessas variações.
Autores como Rabbi Elliot Kukla (primeiro rabino abertamente trans ordenado pelo Hebrew Union College) argumentam que o reconhecimento legal de pessoas intersexo no Talmud pode servir como modelo haláchico inclusivo para o século XXI.
"O Talmud não apenas reconhece a existência de corpos intersexuais, mas os leva a sério dentro da estrutura legal. Isso oferece uma base para ética médica e religiosa que respeita a integridade corporal."— Elliot Kukla, “Creating a Trans Jewish Legal Tradition”
Transgeneridade e Identidade de Gênero
Embora as categorias do Talmud sejam baseadas em fisiologia, elas fornecem uma estrutura que hoje pode ser mobilizada em discussões sobre identidade de gênero. Por exemplo, a forma como o andróginos é tratado às vezes como homem e às vezes como mulher (ou como nenhum dos dois) levanta questões que ressoam com a experiência de pessoas não binárias ou gênero-fluido.
A tradição rabínica não determinava a identidade de uma pessoa unicamente pelo seu órgão genital, mas considerava a ambiguidade como um fator que exigia atenção legal específica — um conceito que, em certo nível, se aproxima da luta atual por reconhecimento legal de identidades diversas.
Rabbi Levi Weiman-Kelman, de Jerusalém, e Rabbi Tzvi Marx, da Holanda, são exemplos de líderes rabínicos que propuseram a aceitação de mudanças legais de gênero com base no princípio haláchico de kavod habriot (dignidade humana), um valor que pode sobrepor certas leis rabínicas em nome do respeito humano fundamental (Berachot 19b).
Decisões Haláchicas Recentes
Responsa do Movimento Conservador (CJLS): Em 2003, o Rabino Mayer Rabinowitz publicou uma teshuvá (decisão legal) reconhecendo a possibilidade de uma pessoa trans ser considerada, para fins haláchicos, de acordo com seu gênero vivido, especialmente em contextos de casamento, conversão e rituais públicos.
Rabino Ethan Tucker (Yeshivat Hadar, NY): Defende que a halachá deve acompanhar o reconhecimento médico e social da identidade trans, especialmente após cirurgia de redesignação, baseando-se em princípios de rov (maioria das características) e marit ayin (aparência social visível).
Responsa do Rabino Eliezer Waldenberg (Tzitz Eliezer) – Volume 10:25: Considera que, após cirurgia de redesignação, a pessoa pode ser tratada como do gênero correspondente à nova anatomia. Embora tradicionalista, essa opinião tem sido citada até por rabinos ortodoxos como base para discussão.
Reflexões Éticas e Contemporâneas
O fato de que o Talmud discute essas categorias com seriedade jurídica — e sem escárnio — oferece um precedente para respeito e reconhecimento social. Não há uma tentativa de "corrigir" ou "curar" essas pessoas, mas sim de incluí-las dentro do sistema legal da melhor forma possível.
Isso contrasta com períodos posteriores da história, onde corpos intersexuais foram muitas vezes sujeitos a cirurgias forçadas ou invisibilização. A tradição talmúdica pode, assim, servir como base para uma teologia inclusiva, que vê a diversidade corporal não como aberração, mas como parte da criação divina.
Considerações Finais
O tratamento dessas categorias no Talmud mostra uma tentativa rigorosa de lidar com a diversidade corporal observada na realidade. Embora o propósito dessas distinções seja legal e religioso, a existência de termos e discussões tão detalhadas demonstra um reconhecimento da variabilidade humana — algo que, só recentemente, voltou ao debate contemporâneo.
O Talmud não vê essas categorias como meras exceções, mas como casos legítimos que precisam de atenção normativa. A presença de centenas de menções a andróginos, saris e tumtum na literatura rabínica sugere que tais pessoas não eram completamente marginais, e sim parte da realidade legal e social com a qual os rabinos precisavam lidar.
Os seis sexos reconhecidos no Talmud mostram que a tradição judaica possui ferramentas para pensar além do binarismo de gênero. Embora os contextos antigos e modernos sejam diferentes, há uma linha comum: o esforço para reconhecer, incluir e normatizar a diversidade humana. Em tempos de polarização sobre identidade e corpo, revisitar esses textos pode ser um gesto tanto de fidelidade à tradição quanto de justiça contemporânea.
O estudo dos seis sexos no Talmud revela que a tradição judaica possui instrumentos internos para reconhecer a complexidade dos corpos e identidades humanas. Se os rabinos da Antiguidade já se preocupavam em integrar juridicamente pessoas intersexo e com desenvolvimento sexual atípico, não há motivo para que o judaísmo contemporâneo não possa fazer o mesmo com pessoas trans, não binárias e queer.
O resgate dessas categorias pode transformar o modo como comunidades judaicas lidam com temas de identidade — não como exceções, mas como parte legítima da criação. Afinal, como diz o Midrash:
"Assim como nenhum rosto é igual ao outro, nenhuma alma é igual à outra."— Midrash Tanchuma, Parashat Pinchas
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