
O quarto mandamento presente na Torá, que ordena a observância do Shabat (Cessar/Encerrar), é um dos mais significativos na tradição judaica. Este mandamento aparece em duas passagens distintas da Torá: em Êxodo 20:8-11, no contexto de Shemot (Êxodo), e em Deuteronômio 5:12-15, no contexto de Devarim (Deuteronômio). Embora o conceito central do Shabat seja o mesmo — a santificação do sétimo dia da semana como um tempo dedicado ao descanso e à conexão com Deus — as duas versões apresentam nuances diferentes que revelam o desenvolvimento do entendimento do Shabat ao longo do tempo.
A Versão de Shemot: O Shabat como Memória da Criação
Em Shemot 20:8-11, o mandamento do Shabat é formulado como uma lembrança da criação do mundo. A Torá nos ensina que Deus criou o universo em seis dias e descansou no sétimo, e por isso o ser humano deve seguir esse padrão, dedicando o Shabat ao descanso. O versículo diz:
"Lembra-te do dia de cessar, para santificá-lo. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é cessar, para o Senhor teu Deus; não farás nenhum trabalho..."
Este foco no descanso, em alinhamento com a criação, sugere que o Shabat tem um papel teológico profundo: é um reflexo do ritmo natural do mundo, um lembrete de que o ser humano deve também descansar e reconhecer a obra divina ao seu redor. Nesse contexto, o Shabat é não apenas um descanso físico, mas também uma oportunidade para o ser humano se reconectar com Deus e refletir sobre a criação.
A Versão de Devarim: O Shabat como Libertação e Justiça Social
Já em Devarim 5:12-15, a versão do mandamento de Shabat ganha uma ênfase diferente, relacionada à libertação do povo judeu da escravidão no Egito. Em vez de apenas apontar a criação, Deuteronômio coloca o Shabat como um símbolo da liberdade adquirida, uma maneira de o povo judeu lembrar-se de sua libertação e da dignidade humana que lhes foi devolvida após séculos de opressão. O versículo diz:
"Guardarás o dia de cessar, para o santificar, como te ordenou o Senhor teu Deus. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o cessar, para o Senhor teu Deus; não farás nele nenhum trabalho... Para que o teu servo e a tua serva descansem como tu."
Aqui, além do descanso individual, a inclusão de servos e escravos no descanso de Shabat revela um aspecto de justiça social. O Shabat não é apenas uma prática pessoal de santificação, mas também um momento de igualdade social, onde todas as pessoas, independentemente de sua posição ou status, têm direito ao descanso. Esse detalhe enfatiza o valor da dignidade humana e do tratamento igualitário, com o Shabat funcionando como um marco de justiça social e de liberdade para todos os membros da comunidade.
O Paradoxo entre as Versões: Criação versus Libertação
O paralelo entre as duas versões do quarto mandamento revela uma evolução na compreensão do Shabat. Em Shemot, o foco está na ordem cósmica e na necessidade de descansar em harmonia com a criação. O Shabat é, nesse caso, uma emulação do descanso divino, um ato de reconhecimento e reverência à obra criativa de Deus.
Já em Devarim, o Shabat é reinterpretado como um ato de libertação e solidariedade. A libertação do Egito torna-se uma base fundamental para o mandamento, e o descanso passa a ser entendido como um direito de todos, especialmente dos oprimidos. Essa versão reflete a experiência histórica do povo de Israel e oferece uma compreensão do Shabat não apenas como uma prática religiosa, mas como um meio de restaurar a dignidade de cada ser humano, independentemente de sua condição.
Relevância Contemporânea: O Shabat como Refúgio de Justiça e Criação
No mundo moderno, as duas facetas do Shabat continuam a ressoar profundamente. A ênfase em Shemot, que nos lembra da necessidade de parar e refletir sobre a criação, encontra eco em um mundo frenético onde o descanso e a contemplação são frequentemente negligenciados. O Shabat, como dia de descanso, oferece uma pausa necessária da rotina exaustiva, permitindo que os indivíduos se reconectem com o divino e com o mundo ao seu redor.
Por outro lado, a ênfase de Devarim sobre a libertação e a justiça social oferece uma reflexão importante para os dias de hoje. Em um tempo de desigualdade social, em que muitos continuam a lutar por direitos básicos e condições de trabalho justas, o Shabat serve como um lembrete de que todos merecem ser tratados com dignidade e respeito. A ideia de um dia em que todos, sem exceção, têm direito ao descanso ressoa como um chamado à construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Conclusão
O quarto mandamento da Torá, em suas duas versões, revela camadas profundas de significado que ainda influenciam nossas vidas. Seja como um reflexo do ritmo natural da criação, como em Shemot, ou como um símbolo de libertação e justiça, como em Devarim, o Shabat continua a ser uma prática essencial na vida judaica, com implicações significativas para nossa compreensão do descanso, da liberdade e da dignidade humana. Em um mundo que constantemente desafia o equilíbrio entre trabalho e descanso, o Shabat oferece uma lição eterna sobre a necessidade de parar, refletir e garantir a justiça para todos.
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